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sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Setúbal: 1810 vs 2011

Setúbal, 1810:
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Setúbal, 2011:

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quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Vende-se prédio na praia junto à ponte do Livramento

NOTA: este post foi revisto e corrigido em 9 de Dezembro de 2011.

Numa das minhas deambulações pela Internet encontrei uma pequena relíquia na Gazeta de Lisboa de 1815. Ei-la:


Fonte: Gazeta de Lisboa, Edições 1-152 (e-Livro Google) Na officina de Antonio Correa Lemos., 1815


Enquadramento: "foi no ano de 1715, que o primeiro jornal oficial português iniciou a sua publicação. Embora seja geralmente conhecido como "Gazeta de Lisboa", ao longo da sua publicação tem ostentado títulos muito diversos. (...) No início do reinado de D. Maria I, no dia 4 de Agosto de 1778, a "Gazeta de Lisboa" reapareceu, conservando este título até 30 de Dezembro de 1820." (ver história completa em http://purl.pt/369/1/ficha-obra-gazeta_de_lisboa.html)

Apontamentos: os nomes dos lugares estão a itálico. É o caso de Villa de Setúbal, que, de facto, só foi elevada a cidade em 1860. O anúncio pretende vender um prédio "de consideração", livre de encargos ("fôro ou pensão") situado "na praia junto à ponte do Livramento". A ponte ligava as duas margens da ribeira do Livramento.
A antiga ribeira do Livramento teria, decerto, algumas pontes, mas a mais importante e a única digna de nota era certamente a que estava junto à praia e era designada de Ponte do Livramento ou do Carmo. Esta última designação tem como origem a ponte ficar junto ao antigo convento da Venerável Ordem Terceira do Carmo da Cidade de Setúbal (http://www.otcarmosetubal.org/historia01.html), do qual só resta uma capela, pois foi destruído pelas ondas que se seguiram ao devastador terramoto de 1755.
Do espólio do fotógrafo Américo Ribeiro consta a seguinte fotografia (que mostra a ponte do Livramento) que mostra a ponte ligando a Porta Nova, uma porta que terá sido aberta na primeira muralha de Setúbal para ligar a parte velha da vila à nova, ou seja, a Rua dos Sapateiros (actual Rua Augusto Cardoso) à outra margem (estou em crer que à Rua Fran Paxeco):


A foto está datada de 1890. A ponte do Livramento ou Carmo (recorde-se que o "templo" de Nossa Senhora do Livramento, ali perto, foi tomado pelos carmelitas descalços em 1655) ficava situada mais a sul, junto à praia, como alguns amigos tiveram a amabilidade de me assinalar e corrigir.

Veja-se a localização neste mapa de Setúbal de 1820 (assinalado com um círculo sombreado) da ponte do Carmo ou Livramento:

Estaria situada muito perto do sítio onde hoje está a fonte do Centenário (vulgo Fonte Luminosa ou "das Ninfas").

As guerras as guerras liberais (1828-1834) deixassem a sua marca. Sabe-se que em 8 de Abril de 1835, a Câmara de Setúbal recomenda ao Engenheiro Cláudio José Lagrange Monteiro de Barbuda (1803-1845) que continue a obra da ponte do Livramento, parcialmente demolida para evitar ataques realistas.
As lavadeiras aparecem também junto a outra ponte, mais pequena, junto ao cruzamento do centro comercial S. Julião, em frente à Capela da Ordem Terceira de São Francisco, numa foto do mesmo espólio (nesta vê-se outra ponte que estou em crer que seja a de Jesus).
Outra foto de Américo Ribeiro mostra a ribeira a ser entubada perto do Bonfim, em 1936. Hoje em dia a ribeira tem outro nome: esgoto da Avenida 22 de Dezembro.
Diz-nos Maria da Conceição Quintas que "a Alameda da Praia, entre a ponte do Livramento e o quartel do Cais, foi mandada calcetar e terraplanar quando era presidente da Câmara Jacomo Maria Ferro, nos anos de 1848 e 1849".
Almeida Carvalho - citado por Maria da Conceição Quintas - diz-nos que, por volta de 1854, Manuel José Neto, “homem de negócio, trabalhador e empreendedor”,  foi "estabelecer uma sua fábrica numa casa situada na Rua da Praia, próxima da ponte do Livramento, do lado do norte e quase junto ao esteiro, ou ribeiro, da mesma denominação"  Ainda em 1855, também, segundo Almeida Carvalho, “Manuel José Neto começou fazendo progressos e obtendo bons lucros [nas conservas de peixe pelo método Appert] [...], próximo à ponte do Livramento ou do Carmo”.
Seria portanto, uma zona importante ligada ao comércio e indústria, perto da praia e do rio.
O prédio que estava anunciado para venda tinha "grandes casas", "dois pátios", "dois fornos" e "um poço". O dono "não tem dúvida de o vender a pagamentos largos". Penso não estar a especular se disser que se tratam de pagamento a prestações. Uma das minhas minha bisavós (nascida em 1911) usava muito esta expressão "não tem dúvida", quando se queria referir a algo que poderia parecer mal, mas afinal "não tinha dúvida", estava bem. Cheirava uma fruta, por exemplo, e se dizia "não tem dúvida", em jeito de interjeição, era porque era comestível.
O dono do imóvel para venda era "José Felippe da Luz", o qual, conforme consegui apurar, era dono de uma fábrica de estamparia de algodão em Rio de Mouro, Sintra. Tinha casa na Rua dos Fanqueiros, n.º 158, em Lisboa. Nesta rua estavam situados os "Mercadores de Lançaria ou Fancaria, destinando-se os sobejos della se os houver, às lojas de quinquilharia" (http://toponimia.cm-lisboa.pt). Na altura a rua teria ainda o nome de Rua Nova da Princesa, mas a presença dos fanqueiros (lojistas de fazendas de linha de algodão, de lã, etc.) deu um nome popular à artéria da baixa pombalina, nome esse que viria a ser oficializado em 1910. Sinal de alguma riqueza será o facto deste José Felipe da Luz ter oferecido um cavalo para o serviço de D. Maria II, Rainha de Portugal, para a remonta estabelecida em Alcântara.
Na Revista popular: semanario de litteratura e industria, lê-se o seguinte: Depois dos produtos da fábrica de Alcântara achamse os tecidos da fábrica dos srs. Salazar Leal e Comp., nos Olivaes, e logo a diante os da fábrica de Rio de Mouro, pertencente ao sr. Filippe José da Luz. Neste estabelecimento a chita [tecido de algodão estampado a cores] é estampada á mão. No seu género é uma fábrica excellente. Consta-nos que exporta muito para Hespanha.

Hoje, na mesma morada, Rua dos Fanqueiros n.º 158, ficam situadas as lojas das confecções Montebranco, como mostra esta imagem do Google Maps:



Resta saber se o prédio do Livramento terá sido vendido e o destino dado ao mesmo terá tido sucesso...

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Um bilhete para Lisboa Barreiro, por favor!

Numa época em que se fala de novo aumento nos transportes públicos deixo-vos uma curiosidade histórica: uma tabela de preços das carreiras de barco a vapor que faziam o transporte de passageiros nos rios Tejo e Sado em 1839.


Ir à popa, a parte traseira do navio, custava o dobro de viajar à proa. Partindo do princípio que os preços da tabela estão em réis é possível fazer algumas contas interessantes.

A viagem mais cara entre Lisboa e o Barreiro custava 100 réis, o que corresponde a 10 centavos ou 0,1 escudos ou 0,000498797897 euros. Multiplicando este valor pelo coeficiente de desvalorização da moeda (a tabela foi actualizada por um despacho muito recente) que é 4335,60 chegamos à seguinte conclusão: em 1839, o bilhete mais caro para a travessia Lisboa-Barreiro custava 2,16 euros. O mais barato custava metade desse valor, 1,08 euros. Actualmente a travessia custa 2,10 euros. Lembro que em Julho a mesma viagem custava 1,85 euros.


A viagem entre Setúbal e Álcacer do Sal custava 360 réis (7,79 euros). Hoje em dia, só a travessia de ferry entre Setúbal e Tróia para um carro ligeiro de passageiros custa 11 euros (e o bilhete de passageiro 2,50 euros).


Não tenho inveja dos portugueses de 1839, que deviam viver em condições bem mais difíceis do que as actuais, mas não me importava nada de dar um saltinho àquela época e atravessar o Tejo de vapor por pouco mais de um euro, mesmo que a pitoresca viagem demorasse mais dos que os actuais 15 minutos (ou 20 em dias de mar agitado). Ao menos não havia máquinas idiotas. Um bilhete, por favor!

Da minha janela eu vi

Janelar é o verbo que traduz o estar à janela. O meu amigo David Pereira, fotógrafo, captou uma velhota a janelar. A fotografia está agora a concurso aqui. Gostava muito de o ver nos 20 primeiros deste concurso e, quem sabe, ganhar. Para que isso aconteça apelo ao seu voto. Basta votar aqui uma vez por dia. Porque janelar é importante. Significa que o ar ainda se pode respirar.

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

terça-feira, 13 de setembro de 2011

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Setúbal ganha novos palcos com a Festa do Teatro

Boa notícia: a cultura em Setúbal não espera pelo fim das obras do Fórum Luísa Todi. O Teatro Estúdio da Fontenova sempre soube encontrar espaços alternativos para dar bons espectáculos: Inatel, Club Setubalense, o parque do Bonfim e até uma casa no Bairro Salgado... Com o Fontenova cada peça procura o seu espaço próprio. E a Festa do Teatro encontrou este ano um novo espaço: o antigo ginásio da renovada escola secundária de Sebastião da Gama, que eu tive a honra de frequentar. Ontem foi noite de casa cheia na escola para assistir à frenética peça "Ibéria-A Louca História de Uma Península", pelo grupo Peripécia Teatro: dois actores e uma actriz contam várias histórias que envolvem personagens do lado de cá e lá da fronteira, alternando entre episódios (Salado, Inês de Castro, Viriato, Aljubarrota, Descobrimentos, Rodesilhas e um milagre...) a um ritmo alucinante. Resultado: muita gargalhada e fascinação pelo trabalho dos actores, um misto de mímica, imitações sonoras e um texto muito bem trabalhado. Deixo-vos aqui o vídeo de apresentação da peça, com menos gargalhas e tranças do que as de ontem... O espaço funcionou muitíssimo bem com um palco amplo montado à frente do antigo palco e deixa boas promessas para os espectáculos que ainda estão em programa.



No antigo palco da renovada escola tinha já assistido ao "Felizmente há Luar" levado à cena pelo Metáforas, o Grupo de Teatro da Escola Secundária Sebastião da Gama. Fiquei com inveja do talento daqueles jovens actores, quer os que contracenaram comigo quando tive a honra de fazer parte do grupo há uns anos, quer os da "nova fornada". Está ali um grupo de "gente gira" e actores a sério, como diz a professora Conceição Crispim. Só quem tinha visto a performance da Tânia Alexandra percebe do que eu estou a falar. Esperemos que o grupo continue a brindar-nos no seu palco que é também a sua casa e que a casa continue a abrir o seu palco ao que de bom se faz em Setúbal.

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Foto: Manuel Galrinho e Maria do Carmo Galrinho
http://www.flickr.com/photos/filosofias/5818995977/


Batalhas navais temperadas com sal de Setúbal


É sabido que o famoso sal de Setúbal era transportado por navios mercantes para várias partes da Europa a partir do século XVII e mais tarde, já no século XIX, para os Estados Unidos. Acerca deste último destino diz-nos a investigadora Inês Amorim o seguinte:

O peso das exportações para os Estados Unidos não surpreende. Não obstante o desenvolvimento da exploração salícola nos finais de XVIII, os Estados Unidos precisavam de grandes quantidades de sal para a pesca e salga de carne que ultrapassassem os insucessos das primeiras instalações industriais. A presença de navios americanos nas águas de Cabo Verde, desde a década de 80 do século XVIII, sendo a maioria dos que aportavam à procura de baleia e de sal, comprova ser esta uma das três áreas extra-americanas de abastecimento (Grã-Bretanha – inclusivé do salgema de Cheshire, Europa do sul e Caraíbas).
Sabe-se, hoje, que o sal português embarcado para os Estados Unidos representava, em 1797/1798, 30.76% do total das importações de sal americanas. Depois daquela data a percentagem decresce até 1806, reduzindo-se a zero por cento, segundo estas estimativas mas, em 1813/1814, as importações são retomadas, subindo para 38.73% do total. Não obstante a quantidade de importações aumentarem, em 1815/16, Portugal perdeu peso percentual, representando apenas 16.74% do total do sal importado pelos Estados Unidos. (...) A confirmar o interesse mútuo pela compra e pela venda do sal de Setúbal para os Estados Unidos, em 10 de Maio de 1852 o governo português permitiu que em Setúbal se vendesse sal aos navios americanos pelos mesmos preços que aos navios portugueses (...). [fonte: http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/7949.pdf]

Menos conhecida é a história dos perigos reais dos que embarcavam nestas viagens. Depois da partida de Setúbal as tripulações dos navios norte-americanos estavam sujeitas à (boa) vontade dos corsários franceses. Num livro publicado recentemente, em 2009, Greg H. Williams, um especialista em aspectos esquecidos da História, sumariza a razão desta "quase guerra" entre franceses e americanos na descrição do seu livro sobre os ataques dos franceses a navios americanos. Para o autor, durante a era da Revolução francesa e napoleónica, a França viveu períodos de fome e miséria devido a colheitas ruinosas. Legal ou ilegalmente, os navios dos corsários (lembrem-se que um corsário é um dono de um navio tripulado com autorização ou consentimento de um Governo para tomar outros navios) tomaram a carga de vários navios mercantes estrangeiros. Os descendentes dos proprietários ou armadores dos navios fizeram queixa. Melhor: fizeram 6479 queixas envolvendo mais de 2300 navios.

Setúbal aparece aqui como personagem secundária neste conflito, mas vejamos a título de exemplo, o que aconteceu a três navios que partiram de Setúbal, de acordo com a recolha de dados de Williams:
  • A 25 de Agosto de 1800, o navio Pacific, registado em Filadélfia e comandado por Parkins Salter, partiu de Setúbal rumo a Portland, carregado com 1350 tonéis (penso ser a tradução da medida hogshead, mas desconheço a aquivalência) de sal e caixas de limões, para além de barris de vinho pertencente ao comandante. No dia 7 de Setembro, foi mandado parar em pleno Oceano Atlântico (ver mapa em baixo), pelo comandante Pierre Jurien de La Graviére, que liderava a fragata francesa de 36 peças de canhão La Franchise (1). Os franceses saquearam o navio americano, levaram 26 caixas de limões, barris de vinho e tudo o que estivesse "à solta" na embarcação. Toda a gente foi evacuada e o navio foi afundado a tiros de canhão. O comandante Salter escreveu para Nova Iorque a 30 de Setembro: "Eles levaram todos os nossos Quadrantes, Livros, Mapas e quase toda a nossa roupa, pelo que estamos numa situação deplorável. É uma situação difícil esta, de sermos privados dos ganhos de uma vida inteira, por causa de uma acto pirata de um grupo de Ladrões Franceses".

  • Em 1800, a barca Mars registada por John Berry, armador e comandante do navi
    o, partiu de Setúbal com destino a Filadélfia, nos Estados Unidos, carregada com sal e cortiça. Foi capturada por corsários franceses, recapturada pelos britânicos e libertada na Antigua para reparações.

  • Em 1813, o Citizen, um navio americano de 303 toneladas, comandado por James Crowdhill e armado por Washington Bowie e John Kurtz, foi mandado parar pelo capitão Albine Réne Roussin (1781-1854), comandante da fragata La Gloire (2), um navio de 40 peças. O navio tinha partido de Setúbal carregado com sal e tinha como destino a Alexandria. A carga foi tomada pelos francesas e o navio foi afundado. Os armadors Bowie & Kurtz receberam 12 mil dólares da companhia de seguros, mas o navio valia o dobro e por isso apresentaram queixa.




Fica aqui mais um apontamento histórico da cidade de Setúbal, desta feita como narradora não participante dos conflitos do início do secúlo XIX.

Notas:

(1) Esta fragata francesa viria a ser capturada em 28 de Maio de
1803 pelos ingleses que a perseguiram por meio dos navios HMS Minotaur (1793), comandado por Charles John Moore Mansfield, do HMS Thunderer (1783) e do HMS Albion (1802). A fragata La Franchise serviu na armada britânica até 1814 (conferir aqui). O comandante Pierre Jurien de La Graviére teria a sua vingança em 1809, na batalha de Les Sables-d'Olonne, onde se celebrizou por comandar três fragatas de quarenta canhões cada e ter sobrevivido ao ataque destas por vários navios britânicos, entre os quais um navio de 80 canhões e dois de 74. Resultado: os ingleses acabaram por desistir após intensas horas de combate e os franceses, vitoriosos, recolheram à costa. Das três fragatas, duramente bombardeadas, uma foi abatida por ser irreparável e as outras duas foram vendidas.

(2) Este capitão e barão francês é o mesmo que liderou, já como almirante, as operações de uma esquadra francesa (seis navios, três fragatas, uma corveta, dois brigues e uma escuna) que entrou pelo Tejo em 6 de Julho de 1831 obrigando o rei D. Miguel I a reconhecer por escrito a "Monarquia de Julho" francesa. O pintor Charles Philippe Larivière retrata esta cena com o almirante em Lisboa, junto à Torre de Belém. O quadro está em Versailles.

domingo, 21 de agosto de 2011

As Sangrias do Viso

Aviso: o conteúdo deste post pode conter descrições susceptíveis de ferir a sensibilidade de alguns leitores.

Existe em Setúbal uma rua que dá pelo nome de Rua da Batalha do Viso, mas poucos conhecem as razões e o desfecho de tal acontecimento histórico. Trata-se de um combate que faz parte da guerra civil que ficou conhecida pelo nome de Patuleia. O confronto deu-se a 1 de Maio de 1847 entre as tropas apoiantes da rainha D. Maria II, comandadas pelo conde de Vinhais e a facção da Junta Insurreccional do Porto, liderada pelo visconde Sá da Bandeira.

Há dias encontrei nas prateleiras virtuais da Google Books um curioso relato do tratamento dado aos feridos desse confronto às portas da ainda vila de Setúbal, na obra "Cirurgia e medicina, clinica positiva", publicada em 1853 e da autoria de Manoel Joze da Rocha, cirurgião pela Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa - a antecessora da actual Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa. [A propósito desta escola vale a pena ler as "Anotações sobre a história do ensino da Medicina em Lisboa, desde a criação da Universidade Portuguesa até 1911 – 1ª Parte", de J. MARTINS E SILVA]

O cirurgião militar estava habituado a tratar um pouco de tudo o que estivesse relacionado com escaramuças bélicas: ferimentos de balas, estilhaços e até de espada. Após o relato de várias aventuras e desventuras médicas resultantes da época, começa o médico a relatar sucintamente a Batalha do Alto do Viso: "Em Montemor soubemos que o general Sá da Bandeira vinha tomar o commando desta força e que trasia uma brigada de gente mais regular. Estas três columnas reunidas formavam uma massa de 5.000 mil e tantos combatentes acampados na deliciosa Villa de Setubal que foi para nós outra Cápua, por quanto nem o General hia procurar o inimigo nem o inimigo nos procurava a nós [o Sá da Bandeira chegou a Setúbal a 16 de Abril, onde se reuniu com as forças do conde Melo] mais de vinte dias até que no primeiro de Maio fômos bater o inimigo num reconhecimento a que se deu o nome de Batalha do Alto do Viso". O embate foi sangrento: as forças de Sá de Bandeira terão perdido 500 homens. Conta o cirurgião que as colunas de Sá de Bandeira foram varridas por "metralha a tiro de pistola". Do outro lado, das forças do conde de Vinhais, leais à rainha, o balanço foi, nas contas do cirurgião, de "cento e quatro feridos de todas as armas, dezoito prisioneiros e setenta mortos".

Consta que o vaso de guerra britânico HMS Polyphemus estaria pelas águas do Sado (conferir aqui: "29 April – 1 May [1847] Rough copy diary entry in Colonel Wylde's hand concerning his journey to Setubal onboard HMS Polyhemus to meet Sa da Bandeira and his acceptance of British mediation. Also concerning insurgent activity and his trip to Vinhae's headquarters to
propose a ceasefire". E conferir aqui também.). Facto que aliado ao desaire do Viso terá convencido Sá da Bandeira a assinar um armistício (cessar-fogo) sob mediação britânica. Eis o papel de Setúbal na Patuleia.

De acordo com o relato do cirurgião, os feridos terão sido levados para o Palácio do Sapal (actual edifício do Governo Civil na actual Avenida Luisa Todi) onde se estabeleceu um "hospital de sangue". Entre os feridos mais graves contava-se um soldado que "ferido de bala" na testa. O médico não teve dúvidas em aplicar um tratamento comum na época: a sangria ("Mandei sangrar o doente, (...) no segundo dia appareceu em estado comatoso(...). Ao quarto dia, o doente tinha menos febre, (...) pede para comer e dá-se-lhe uma colher de sopa d'arroz no caldo, e assim continúa até ao septimo dia, em que fallece sem convulsões"). Outro combatente, desta feita de cavalaria, foi "ferido com duas cutiladas na cabeça,
e levou uma estocada no pescoço que o atravessou de parte a parte passando a ponta da espada pela parte posterior dos musculos da laringe". Apesar da gravidade dos ferimentos, nenhuma parte vital foi afectada e "o doente voltou ao serviço". O cirurgião dá conta de um terceiro ferido, um tenente trespassado por uma bala, e dele afirma que "não havia dúvida que a bala tivesse interessado o pulmão e a pleura, pois o ar sahia por ambas as feridas".
Este paciente acabou por ser "sangrado largamente, três vezes nas primeiras 24 horas". Acabou por recuperar e antes do fim do mês já fazia serviço no seu batalhão. Nestes tempos, os cirurgiões ainda acreditavam que a sangria ou sangramento dos doentes permitia equilibrar os seus "humores" ou "temperamentos" e assim alcançar a cura. Hoje sabe-se que os efeitos da sangria são nefastos, salvo raras excepções medicamente controladas.

O nosso cirurgião-sangrador ainda teve trabalho em Setúbal: controlar uma epidemia de sarna entre os soldados e o tratar de doenças sexuais nos homens e nas prostitutas ("julguei conveniente curar os homens e tractar e fiscalizar as meretrizes"). Emigrou para Espanha "até deixar socegar o fogo das paixões revoltosas" onde continuou a tratar pacientes e só voltou a Portugal no final de 1847. Fica este pequeno apontamento sobre a batalha do Viso, sobre a qual haveria certamente mais para contar.

O Putu da Margem Sul

O puto até nem tem muita piada (ainda), mas invejo-lhe a coragem. Pegou numa câmara, arriscou e publicou, sem medos, um vídeo no YouTube que é um grito ao mundo: "ei, eu estou aqui!". Quantos de nós, naquela idade, não fizemos brincadeiras caseiras do género apenas para consumo interno e mostrar aos amigos? O miúdo ainda não é uma estrela do YouTube, mas já cativou o coração de alguns setubalenses. Diz seguir as pisadas do Helfimed e do Môço do Cabresto, duas micro-estrelas portuguesas do YouTube. Chama-se Simão e é um rapaz. Não malhem em cima do Simão só porque ele diz que é da Margem Sul (os puristas gostam de dizer que setubalense a sério é da margem norte do Sado...), que ele ainda está na escola. Em breve, o Simão, o estremenho, vai perceber que é preciso escrever um guião antes de filmar e aí a coisa vai melhorar, vão ver. Deixo-vos com os dois primeiros vídeos, que já passaram a estonteante centena de visualizações. Em Episódio "O Primeiro", "curtinho mas com impacto", o "putu" faz uma antevisão do ano lectivo. Divirtam-se com o Simão.










quinta-feira, 14 de julho de 2011

Como os jornais nos desinformam sobre as notas de Matemática

Se há coisa que um aluno do 9º ano sabe fazer é contas. Pode até nem saber resolver todo o exame de Matemática, mas sabe que se tiver um 3 não terá de se esforçar muito para manter essa nota, basta resolver uma pequena parte do exame para não chumbar.

Sigam o raciocínio. Um aluno é avaliado durante o ano e no final é-lhe atribuída uma nota (chamada Classificação Final) de 1 a 5. Não existe a nota 0. Depois vai a exame e é-lhe atribuida uma nota de 0 a 100 que é convertida numa nota (Classificação de exame) de 1 a 5. A Nota Final é calculada da seguinte forma: a Classificação Final vale 70% e a Classificação de Exame vale 30%.

De acordo com estas contas, os resultados possíveis são os seguintes:


1 2 3 4 5
1 1 1 2 2 2
2 2 2 2 3 3
3 2 3 3 3 4
4 3 3 4 4 4
5 4 4 4 5 5
Na coluna a negrito está a Classificação final, ou seja, a nota que o aluno tinha antes de ir a exame nacional. Na primeira linha, os números sublinhados representam a nota do exame. Cruzando os dois valores obtém-se a Nota Final.

Da leitura da tabela resulta claro que um aluno com 1 não deve ir a exame, pois chumbará mesmo que tenha 5 no exame. A um aluno com 4 basta comparecer na prova e entregar a folha em branco, pois mesmo com 1 no exame passará sempre na disciplina (quero acreditar que a maioria dos alunos de 4 têm algum orgulho e se esforçarão para manter a nota, mas haverá sempre uma minoria que engrossará as "negativas no exame", distorcendo a estatística).

Mas o dado mais interessante é este: a um aluno com 3 ( e muitos há cuja nota foi "puxada" pelo professor no 3º período...) basta ter 20 valores em 100 no exame para ter nota 2 no exame. E com nota 2 no exame um aluno de 3 passa de ano!

Confira aqui com uma grelha oficial de correcção preenchida por mim com alguns exemplos hipotéticos:




Conclusão: quando ler notícias que dão conta do descalabro das notas dos exames de Matemática e Português do 9º ano, lembre-se que essas notas só contam para 30% da nota final e que um aluno de 3 (que representará a maior fatia dos alunos juntamente com os alunos de 1 e 2) precisa apenas de ter 1/5 do seu exame correcto para passar de ano.
Para uma leitura correcta dos dados era importante saber quantas das negativas a exame correspondem:
a) a alunos que tiveram negativa durante o ano lectivo (e que assim repetem o fracasso); e
b) a alunos que tiveram 3 e fazem apenas os mínimos (tirar entre 20 a 49 no exame) para assim passar na disciplina.
Tenho a certeza que o descalabro é grande, mas gostava de ver mais rigor na divulgação e interpretação desde dados. Como jornalista, sei que nem sempre é possível fazer estas contas em tempo útil. Talvez esteja na hora de alguém as fazer em tempo inútil.

segunda-feira, 27 de junho de 2011

Amanhacendo em Setúbal

"O Sol da manhã não dura todo o dia""O Sol quando nasce, é para todos"

Avenida Bento de Jesus Caraça, Setúbal, 2011.
Foto: Ricardo Vilhena

segunda-feira, 20 de junho de 2011

A Arena do Convento é Nice e o Jorge também

Dia 19 de Junho, 22h: o largo do Convento de Jesus (Praça Miguel Bombarda) está a abarrotar de gente. Quatro mil, cinco mil pessoas? Talvez mais. O panorama faz-me lembrar os tempos em que a Feira de Sant'Iago se realizava lá em baixo e uma menina do Montijo chamada Dulce Pontes encantava a multidão. Desta a feita a festa era outra, a da freguesia São Julião, mas aberta a toda a cidade. E o artista? Jorge Nice (foto de Rui Luna)! O artista nem precisou de cantar muito. Os setubalenses, setuvaleiros e visigodos já têm as letras na ponta da língua. A arena tem sido criticada desde os tempos em que foi construída, reinava Mata Cáceres no poder autárquico. Mas entre esta e a do Agrafo Gigante (auditório Zeca Afonso), prefiro a primeira, embora com uma reserva: o som das colunas não afectará a estrura do Convento de Jesus? Certo é que o bom setubalense não dispensa uma boa festa de Verão. É caso para dizer: Aua!

quarta-feira, 15 de junho de 2011

McDonald's oculta painel de azulejos de Pedro Jorge Pinto (1900-1983)

Registo com grande preocupação que o restaurante McDonald's Setúbal Centro ocultou o grande painel de azulejo com a Região dos Três castelos, da autoria do pintor setubalense Rogério Chora de PEDRO JORGE PINTO (1900-1983)***, que lá estava desde os tempos em que o espaço era antigo e centenário café "Esperança". A ocultação deu-se depois das recentes obras que modificaram o mobiliário do restaurante e tranformaram o espaço exterior numa esplanada coberta mais ampla. Em 1998, quando se soube da instalação do McDonald's naquele espaço, Rogério Severino, ilustre jornalista, falecido em 2003, alertava no Setúbal na Rede:

Esperamos que tal pintura, ela também um orgulho dos setubalenses, se mantenha já que não aceitamos que ela seja retirada e se bem que não se encontre classificada ela representa já um património que Setúbal considera como seu. Consideramos que a pintura não incomoda o interior do espaço, pelo contrário, enriquece-o e a cidade certamente não aceitará a sua retirada. (conferir aqui)

Retirar aos setubalenses e aos visitantes da nossa cidade o direito de contemplar esta obra de arte é imcompreensível e um atentado à memória cultural e artística da cidade. Reparei também que as colunas ornamentadas a azulejos, características do espaço foram igualmente ocultadas. Por considerar urgente a reposição do painel deixo aqui este alerta.

***Publiquei este post originalmente em 15/06/2011
Entretanto, surgiu no grupo do Facebook "Setúbal quase Esquecida" um comentário, de Diamantino Vasconcelos, que por achar ter pertinência reproduzo agora. Não sei qual é a fonte do Diamantino Vasconcelos. A minha fonte não era a mais fidedigna. Por isso, procurei no fundo local da biblioteca municipal, mas nada encontrei sobre os ditos painéis. Até nova versão aqui fica:

Diamantino Vasconcelos: Não é importante para a discussão, mas de facto o autor dos painéis do ex-Café Esperança foi PEDRO JORGE PINTO (1900-1983), o mesmo dos painéis do mercado (parede sul, zona do peixe). A grande diferença cromática e conceptual deve-se, claro, à distância de 3 décadas na consecução de uns e outros. Foi o regresso à cidade nos anos 60, do azulejista que já havia tratado temas setubalenses no início da década de 30. Na coleção da Câmara está, por exemplo, uma belíssima aguarela que retrata o chafariz ainda implantado frente à Câmara. Portanto, o seu a seu dono - tanto P.J.P como LUCIANO dos SANTOS trabalharam na decoração em azulejo tanto do ex-café como do Hotel. Aliás, como Manuel Tavares (1911-1974) que terá fornecido tantas aguarelas originais, quantos os quartos do Hotel. Aparentemente tb ninguém sabe o rastro delas. Na remodelação, "desapareceram" ... 


NOTA: Mais alguns apontamentos --> Tive oportunidade, no último Verão, de visitar dois outros McDonald's onde tudo (ou quase) está intacto. Trata-se do antigo Café Imperial, Av. Aliados, Porto (ver, a propósito deste café, o brilhante apontamento de Maria Teresa Castro Costa em http://www.apha.pt/boletim/boletim2/pdf/CafesDoPorto.pdf ), e do McDonald's na Praça da República, em Coimbra, antigo café Mandarim, onde pude constatar que está em muito bom estado de conservação o painel de azulejos de Vasco Berardo, datado de 1960. O café do Porto optou pelo mesmo estilo de nova decoração com aquelas placas decorativas acastanhadas, mas sem tapar nada de relevante. O mesmo estilo é usado no McDonald's do Saldanha, mas curiosamente não é usado no do Jumbo de Setúbal. Lamentável que a remodelação, no Esperança, não tinha tido em conta que havia e há outras alternativas.

segunda-feira, 6 de junho de 2011

Só para nerds: método de Hondt e distribuição de mandatos em Setúbal

Os mandatos estão a negrito.

Em 2011

PS PPD/PSD CDU CDS BE
1 114358 105965 82816 50660 29620
2 57179 52983 41408 25330 14810
3 38119 35322 27605 16887 9873
4 28590 26491 20704 12665 7405
5 22872 21193 16563 10132 5924
6 19060 17661 13803 8443 4937
Dados: http://www.legislativas2011.mj.pt

Em 2009:

PS CDU PSD BE CDS
1 142626 84203 68740 58827 38378
2 71313 42102 34370 29414 19189
3 47542 28068 22913 19609 12793
4 35657 21051 17185 14707 9595
5 28525 16841 13748 11765 7676
6 23771 14034 11457 9805 6396
7 20375 12029 9820 8404 5483
Dados: http://www.legislativas2011.mj.pt

Mais info acerca do método de Hondt, o método usado no sistema eleitoral português para converter votos em lugares no Parlamento: http://www.cne.pt/index.cfm?sec=0501010100

quarta-feira, 1 de junho de 2011

Elogios rasgados

A qualidade é coisa rara. Andamos tão desabituados de a ver que ficamos sem saber muito bem o que dizer quando a vemos. Foi o que me aconteceu quando tentei dizer ao José Lobo o que tinha achado do seu texto "Silêncios Rasgados". Eu sabia que o mundo interior dele era complexo e duro, mas ainda não tinha visto a prova. O texto do José Lobo serve de base à peça que a equipa do Teatro Estúdio Fontenova tem em cena por estes dias (de 13 de Maio a 5 de Junho (Quinta a Sábado) às 22h e Domingos às 17h) numa moradia desabitada (de finais do século XIX) do Bairro Salgado, mais precisamente na Rua Garcia Perez Nº 36. O tema, a violência doméstica, é retratado de forma cruel, quase grotesca, com todo o desconforto a que temos direito (e que somos convidados a não ignorar), que isto não é coisa para ser fácil de ver. Tudo é cru. Em cena fala-se do homem, do agressor, mas este nunca aparece senão de forma figurada. Fala-se de um homem que é ensaista. Ensaista de porrada. Ensaia tanto que a mulher torna-se múltipla, fala de si como se falasse de outra pessoa e ora abandona a casa ora volta por pena do marido (para desespero do público). A doença, a repulsa, o nojo, a náusea que a mulher-mãe-vítima sente e transporta, contamina a retina do espectador. Este é transportado de quadro vivo em quadro vivo, como se em cada assoalhada da casa vivessem ainda mulheres que não têm direito a ser felizes nem a ser mulheres. Percebi agora o óbvio: este texto funciona porque não é para ser lido. É, como está sendo, para ser interpretado em teatro. As histórias que ouvimos aqui são baseadas em vivências contadas por vitimas reais, fruto de entrevistas que o autor conduziu. O resultado dessas conversas foi esta peça, como podia ter sido um documentário ou uma reportagem. O resultado foi arte. Daquela arte que serve para reflectir e dar esperança. Arte que deve fazer sempre parte da nossa setubalidade. Deixo-vos com um pensamento da Inês Pedrosa, escrito noutro contexto, diferente do desta peça: "A violência é viciante, e não só para os que a exercem. Vicia também os que a sofrem, facilmente se torna uma forma de prazer, porque se confunde com a experiência do abismo, da vertigem, da entrega absoluta - e tanto mais quanto mais precoce for a iniciação."